O médico e o monstro?

Estamos em Londres, no século XIX. O médico Henry Jekyll acredita que o mal e o bem coexistem em nós e cria uma fórmula para isolar esses lados aparentemente opostos. Ao experimentá-la em si mesmo, ele liberta Mr. Hyde, seu lado mal, dionisíaco, demoníaco. Eis a síntese de “O médico e o monstro” de Robert Louis Stevenson. Essa tal civilização meia-bomba que conhecemos existiria se não abríssemos mão diariamente dos mais abjetos desejos? Se o Mr. Hyde de todos nós botasse as garras de fora haveria ordem e progresso? Claro que não, como muitíssimo bem apontou Freud no livro “O mal-estar na civilização”.

No entanto, o que me fez lembrar do clássico de Stevenson não foi algo tão sublime como a análise do coeficiente de civilidade no mundo. Eu estava pensando no namoro de uma amiga bastante próxima. Em pouco tempo, ela se viu com motivos para terminar umas quatro vezes – e terminou. Das mais variadas formas: sumindo, chorando, usando palavras duras, discutindo via SMS. A sensação que teve – ela mesma me disse isso – é que seu namorado era um descendente do Dr. Jekyll com fórmula e tudo.

Ontem, mais uma vez, ela disse que queria acabar com tudo e desfiou suas queixas com calma, mas não sem dor. Após ouvi-la, a resposta dele foi sintética: “Você espera que eu aja exatamente como você, mas eu sou outra pessoa”. Não parece óbvio? Parece, mas mesmo assim fazemos isso todos os dias, o tempo todo: esperamos que as pessoas se comuniquem, ajam, pensem da mesma forma que nós. Em vez de tentar entender em que código o outro funciona, de que maneira ele expressa suas ideias e sentimentos, em vez de expor o nosso próprio código, nós nos calamos, nos entristecemos, choramos até as lágrimas implorarem por férias.

Sem saber o que fazer, minha amiga e seu namorado ficaram em silêncio, sentados em pontas opostas num sofá grande demais. Ele estendeu sua mão para ela. Ela vacilou por um, dois instantes e, por fim, estendeu sua mão para ele.

Foi então que minha amiga percebeu tudo. Não era seu namorado que se dividia entre atitudes de médico ou de monstro: era ela. Ela agia ora como o amável Dr. Jekyll, ora como o demente Mr. Hyde. Por sua dificuldade em deixar claro o que faz ou não diferença, pela sua incapacidade de ver o quanto pode ser enriquecedor compreender um código diferente, ela esteve a um passo de perder alguém muito, muito importante.

O desfecho de “O médico e o monstro” não é bom: a fim de matar Hyde, Jakyll também morre. No caso de minha amiga, porém, para matar o monstro sem que ela morra, só uma coisa é necessária: a delicadeza e a boa vontade de amadurecer.

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